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3. Princípios fundamentais

Publicado: Quarta, 11 de Junho de 2014, 18h41

Entender o futuro do saneamento básico no Brasil supõe entender e conceituar seus fundamentos, seus pressupostos e as diferentes visões envolvidas. São definições que estão longe de serem neutras, embora essenciais para orientar o planejamento, que também não é neutro ou uma atividade sustentada apenas em métodos e técnicas. Muito ao contrário, cada escolha de caminhos, cada método, cada proposição, recebe a influência da visão de mundo e de sociedade, dos agentes sociais que se envolvem no processo participativo de planejamento. Entretanto, no Plansab, como em outros trabalhos desenvolvidos com rigor científico, empregam-se métodos visando reduzir, e não anular, por impossível, as subjetividades.

Assim, a construção do Plansab não se reduz a um processo técnico-científico descontextualizado. Está envolto em um contexto social, político e econômico, dentre outros aspectos. A sua abertura para o social, ao buscar suporte conceitual em princípios fundamentais, possibilita explicitar distintas leituras e enfoques sobre a sociedade. Nesse sentido, a elaboração do Plano foi sustentada em princípios da política de saneamento básico, a maior parte deles presente na Lei nº 11.445/2007. Alguns se baseiam em conceitos que requerem precisão, sendo muitas vezes sem uma significação consensual pelos diversos autores que se ocuparam de discuti-los ou entre diferentes correntes teóricas. Neste capítulo, explicitam-se alguns princípios que orientaram a elaboração do Plano.

A universalização do acesso é tributária de certa noção de igualdade, em que defende o acesso de todos aos bens e serviços produzidos na sociedade. Está presente no lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade) e nas promessas dos socialistas utópicos. Ainda que teóricos questionem a igualdade formal – estabelecida na superestrutura jurídico-política de diversos países –, após a revolução burguesa, a possibilidade de os sujeitos defenderem a igualdade real pela luta política propiciou ganhos para as classes subalternas por meio de reformas. Sistemas de proteção social de caráter universal ou políticas públicas universais, a exemplo da saúde e da educação, desenvolveram-se nas sociedades capitalistas a partir da emergência do chamado estado de bem-estar social, especialmente nos anos 1950 e 1960. Em contraste, o Brasil adotou um modelo de “estado desenvolvimentista”, que permitiu a ampliação de benefícios e serviços por intermédio da previdência social. Neste modelo, o Brasil estruturou-se historicamente de forma não universalista, no sentido da concessão de direitos não à totalidade da sociedade, mas a grupos sociais escolhidos, como forma de incorporar certas frações das camadas populares à arena política[1]. Trouxe como consequência uma desigualdade sócio territorial estrutural no acesso aos serviços, que se agrava nos anos 1990, com a política de ajuste econômico e reforma do já precário estado de bem-estar social.

No entanto, sobretudo após a Constituição Federal de 1988, a universalidade torna-se um princípio com ampla aceitação da sociedade. No caso do saneamento básico, tal preceito não foi historicamente a tônica ao longo das políticas implementadas, tendo sido consolidado apenas a partir da Lei nº 11.445/2007, que apresenta como primeiro princípio fundamental dos serviços de saneamento básico a universalização do acesso. A noção de universalidade remete à possibilidade de todos os brasileiros poderem alcançar uma ação ou serviço de que necessite, sem qualquer barreira de acessibilidade, seja legal, econômica, física ou cultural. Significa acesso igual para todos, sem qualquer discriminação ou preconceito.

Contudo, para efeito da citada Lei, considera-se a universalização como a ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico, o que pode soar contraditório com o conceito de acesso igual para todos. Sendo a universalidade atingida nas próximas décadas, estando assegurada a possibilidade de o acesso de todos aos serviços, questões relacionadas ao financiamento e à capacidade de pagamento podem colocar em questão a garantia do acesso universal. Além disso, o conceito de universalidade, em si mesmo, pode acarretar diferentes interpretações, que não encontram necessariamente consenso, como a discussão de se “saneamento para todos” deve incluir em sua abrangência também as atividades econômicas, e se essas também seriam dever do Estado. Por outro lado, considerando a noção de saneamento básico adotada na Lei nº 11.445/2007, a universalidade do acesso deve contemplar a integralidade dos componentes, isto é, abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.  Assim, não basta uma aceitação do princípio geral da universalidade, isoladamente, sendo que este deve ser conceituado de forma articulada com as noções de equidade e integralidade.

Equidade, dentre as suas várias noções explicativas, pode ser entendida como a superação de diferenças evitáveis, desnecessárias e injustas. Embora reconhecendo que as desigualdades inaceitáveis e injustas mereçam correções, esse entendimento, muito presente em documentos de organismos internacionais, legitima o pagamento de serviços pelos que podem fazê-lo, restringindo a atuação dos serviços públicos e gratuitos exclusivamente para os pobres, política conhecida como focalização. Há que se distinguirem ainda as desigualdades nas condições e na qualidade de vida, de um lado, e as desigualdades no acesso e consumo de bens e serviços, de outro. No caso do saneamento básico, caberia separar, para efeito de análise, a qualidade de vida de uma população em um dado território, de um lado, e o acesso aos serviços, bem como à proteção do meio ambiente, de outro. Equidade pode ainda ser explicada como o igual tratamento para os iguais (equidade horizontal) ou como o tratamento desigual para desiguais (equidade vertical). Portanto, embora a igualdade seja um valor considerado importante, há situações em que ocorrem grandes desigualdades, como no acesso aos serviços de saneamento básico. A prestação de serviços às coletividades e a garantia do acesso aos bens coletivos, de acordo com as necessidades ou destacando um grupo ou categoria essencial que seria alvo especial da intervenção, possibilitaria oferecer mais recursos para os que mais precisam. Nesses casos, atender igualmente aos desiguais poderia resultar na manutenção das desigualdades, impedindo atingir a igualdade. Na realidade, a questão posta procura demonstrar que a igualdade pode não ser justa, cabendo indagar: em nome de que padrão de justiça social as distintas racionalidades de distribuição de recursos utilizadas pelas políticas setoriais ou pelos níveis de governo são formuladas? Com vistas, sobretudo, à distribuição de recursos, a noção de equidade se impõe. Admite, em tese, a possibilidade de atender desigualmente os que são desiguais, priorizando aqueles que mais necessitam para que se possa alcançar a universalização dos serviços.

O tema da integralidade, no caso do saneamento básico estabelecido comoo conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados (Lei nº 11.445/2007), tem sido utilizado como noção, conceito, princípio, diretriz operacional, imagem-objetivo, proposição política, ideia, ou “conceito em estado prático”. Reconhece-se que uma definição completa, precisa e unívoca de integralidade não é tarefa simples, podendo se abordar a integralidade a partir de quatro eixos: eixo das necessidades, relacionado ao acolhimento e resposta às demandas das populações; eixo das finalidades, referente aos graus e modos de integração entre as ações; eixo das articulações, ou graus e modos de composição de saberes interdisciplinares, equipes multiprofissionais e ações intersetoriais no desenvolvimento das ações e estratégias; eixo das interações, relacionado à qualidade e natureza das interações intersubjetivas no cotidiano das práticas. Para o campo do saneamento básico, cabe destacar, especialmente, oeixo das articulações, pois pode favorecer a combinação de distintas abordagens, inclusive mediante ação intersetorial. O sistema integral permitiria o entrosamento entre as diversas partes que compõem o todo, além de incorporar políticas, programas e práticas. O caráter sistêmico e integral do conjunto das intervenções contribuiria para assegurar maior efetividade, pois poderia atuar sobre as manifestações fenomênicas, os nós críticos e acumulações que as geram, assim como sobre as regras básicas que compõem a sua estrutura. Portanto, ao se pensar o setor de saneamento básico, pode-se admitir que a integralidade, como uma diretriz da Lei, poderia orientar a estruturação de programas, políticas e sistema, bem como a organização de instituições e serviços: trata-se de dispositivo político que habilita os sujeitos nos espaços públicos a encontrarem novos arranjos sociais e institucionais.



[1]Ver DRAIBE, S. As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas.  In: Para a década de 90: prioridades e perspectivas de políticas públicas. Políticas Sociais e Organização do Trabalho. Brasília: IPEA, 1989. v. 4 e DRAIBE, S. O welfare state no Brasil: características e perspectivas. In: Ciências sociais hoje. São Paulo: ANPOCS, 1989.

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