3. Princípios fundamentais. Página 2
Já a intersetorialidade buscaria se sintonizar com a atual metamorfose na estrutura do conhecimento disciplinar que, com a profundidade alcançada pelas especialidades, tem impulsionado a ciência a percorrer mais uma volta da espiral, em busca de visões transversais dos fenômenos, que permitam considerá-los em sua complexidade e interdependência. E, como decorrência, também a organização do Estado moderno, estruturado inicialmente sob o modelo disciplinar, dá mostras de necessidade de mudanças para alcançar maior efetividade na sua ação. O saneamento básico, como campo de políticas e de gestão públicas, reflete essa movimentação paradigmática. A gestão fragmentada de seus componentes e desarticulada de outros campos de ação pública tende a dificultar a resposta aos reptos do desenvolvimento social. Dessa forma, a introdução da transversalidade para promover a articulação matricial das estruturas setoriais e a intersetorialidade, com o compartilhamento e o diálogo entre tecnologias e práticas setoriais, são estratégias que visam a preparar o Estado para o processo de metamorfose das instituições. A lógica vigente, de restringir tomadas de decisão que afetam uma gama tão ampla de interesses e serviços públicos, como é o saneamento básico, apenas à prestação dos serviços, sem considerar todas as inter-relações com a gestão ambiental, a gestão dos recursos hídricos e o uso e ocupação do solo, entre outras interfaces, gera distorções. Essas conexões estão vivas nos territórios, mas têm pouca acolhida nas estruturas setorializadas de sua gestão, embora já comecem a ser acolhidas nos instrumentos legais do País relacionados ao setor. Uma prática intersetorial suporia vincular análises, planos, programas, decisões e ações a territórios, onde todas as questões se vivificam e mostram suas interdependências.
A sustentabilidade dos serviços, a despeito das diversas significações atribuídas ao termo, seria assumida pelo menos a partir de quatro dimensões: a ambiental, relativa à conservação e gestão dos recursos naturais e à melhoria da qualidade ambiental; a social, relacionada à percepção dos usuários em relação aos serviços e à sua aceitabilidade social; a da governança, envolvendo mecanismos institucionais e culturas políticas, com o objetivo de promoção de uma gestão democrática e participativa, pautada em mecanismos de prestação de contas; e a econômica, que concerne à viabilidade econômica dos serviços. Um tipo ideal de modelo sustentável de gestão de serviços de saneamento básico privilegiaria as escalas institucionais e territoriais de gestão; a construção da intersetorialidade; a possibilidade de conciliar eficiência técnica e econômica e eficácia social; o controle social e a participação dos usuários na gestão dos serviços; e a sustentabilidade ambiental. Ainda que a Lei nº 11.445/2007 remeta às diversas dimensões da sustentabilidade, especificamente na dimensão econômica estabelece que os serviços públicos devam ter a sustentabilidade assegurada, sempre que possível, mediante remuneração pela cobrança dos serviços. Entretanto, o Plansab aponta que a cobrança aos usuários pela prestação dos serviços não é e, em muitos casos não deve ser, a única forma de alcançar sua sustentabilidade econômico-financeira. Essa seria de fato assegurada quando recursos financeiros investidos no setor sejam regulares, estáveis e suficientes para o seu financiamento, e o modelo de gestão institucional e jurídico-administrativo adequado.
Outra importante dimensão conceitual é a influência da formação, do desenvolvimento e das mudanças históricas do Estado brasileiro, que pode revelar o porquê de o setor de saneamento básico no Brasil, com seu aparato institucional, seus marcos legais, seus agentes sociais, o nível de acesso aos serviços e todas as suas diversas características, ter assumido a configuração atual. Assim, o entendimento dos determinantes políticos, econômicos e socioculturais do cenário brasileiro do acesso ao saneamento básico passa por um esforço de compreensão das relações entre Estado, sociedade e capital e suas influências na definição de políticas públicas em geral e nas de saneamento em particular. Por outro lado, esse entendimento também envolve uma reflexão sobre os fluxos e nexos entre a formulação de políticas, a tomada de decisão, a implementação, a execução, os resultados e os impactos produzidos. Contribui para este debate examinar a relação entre Estado e políticas de saneamento em outros países, em especial naqueles que lograram a universalização dos serviços.
Observando a realidade dos países europeus e norte-americanos, que atualmente têm a maior parte dos problemas de cobertura pelos serviços de saneamento solucionados, pode-se localizar que, na origem desses serviços (de fins do século XVIII até a segunda metade do século XIX), imperou uma lógica privada na sua provisão. Ficou claro para a sociedade, no entanto, que essa lógica não seria capaz de assegurar a universalização dos serviços, em especial para a parcela mais pobre da população. Desde fins do século XIX, passa a prevalecer uma visão de racionalismo administrativo, definido como a aplicação do conhecimento científico na organização burocrática governamental, para a gestão de recursos, bens e serviços, contudo, em um modelo vertical de organização do Estado, com supervalorização dos especialistas e baixo nível de controle social. Este segundo modelo foi responsável por maciços investimentos públicos e a decorrente universalização do acesso aos serviços. A partir da década de 1980, retoma-se a lógica da privatização, justificando-se como uma resposta à crise interna dos serviços públicos, mas na prática tendo em sua origem pouca ou nenhuma relação com os problemas próprios do saneamento.
Em síntese, observam-se duas trajetórias, não totalmente independentes e nem sequer defasadas no tempo. De um lado, a dos chamados países desenvolvidos, que em geral alcançaram a universalização dos serviços de saneamento, mas que muitas vezes vêm enfrentando oscilações na estabilidade do setor, em função tanto da orientação geral do Estado, quanto de eventuais embates políticos envolvendo a sociedade civil. Tais oscilações podem conduzir a fissuras e tensões em sua política pública, motivadas, por exemplo, pela exclusão das camadas empobrecidas da sociedade, problemas ambientais ou insatisfações quanto à gestão. De outro, os países em desenvolvimento, cujo modelo de desenvolvimento se deu sem que o Estado tivesse se comprometido com o atendimento universal das populações e que ainda enfrentam antigos e novos obstáculos para o alcance dessa universalização, sobretudo quanto ao desafio da inclusão dos pobres. A forma como os estados nacionais e suas sociedades vêm abordando a tensão entre o status da cidadanização e a mercantilização dos serviços explica, em grande medida, as distintas trajetórias. Para o caso brasileiro, considerando que a universalização ainda requererá significativa soma de recursos, sobretudo em áreas onde vive populações de baixo poder aquisitivo, e que o apoio à gestão é claramente fator limitante à sustentabilidade dos serviços, a forte presença do Estado mostra-se essencial. A transferência das ações públicas exclusivamente para as forças de mercado e para a busca do mais valor poderá ser incompatível com a necessidade de superação dos desafios da universalização.
Outro princípio relevante para o planejamento da área de saneamento básico refere-se à participação e controle social ou a democratização da gestão dos serviços. A gestão dos serviços de saneamento é tradicionalmente relegada à dimensão técnico-administrativa e artificialmente separada dos processos socioeconômicos e políticos que estruturam, dão marco e até determinam a forma como estes serviços são organizados e geridos. Portanto, a construção de relações entre cidadania, governabilidade e o controle e a participação social, vislumbrando avançar na instituição de práticas democráticas substantivas, corresponde a uma tarefa complexa, em decorrência, em parte, da própria natureza do tema, localizado no limiar entre o campo político e o campo técnico, ambos com suas múltiplas dimensões e contradições internas.
Por fim, aspecto que merece cuidadosa atenção diz respeito à matriz tecnológica que orienta o planejamento e a política setorial. Planejar o saneamento básico no País, com um olhar de longo prazo, necessariamente envolve a prospecção dos rumos tecnológicos que o setor pode – ou deve – trilhar. Tal questão envolve diferentes dimensões. Por um lado, cabe à política de saneamento básico identificar tendências, nacionais e internacionais, segundo as quais a matriz tecnológica do saneamento vem se moldando, o que supõe também procurar enxergar novos conceitos, ainda que sejam antigas formulações em novas roupagens, ou novos desafios que pressionam no sentido de mudanças paradigmáticas. Neste sentido, temas como a sustentabilidade, a gestão integrada das águas urbanas, o saneamento ecológico e o combate às mudanças climáticas globais podem ser evocados como exemplos. De outro lado, pode significar, ativamente, enxergar qual padrão tecnológico deve ser apoiado e incentivado, inclusive prevendo-se movimentos de transição ao longo do período de planejamento, na direção das trajetórias mais desejáveis daquela política. Deve-se ter claro ainda que a matriz tecnológica predominante, ou a ser induzida pelo planejamento em saneamento básico, não é livre de valores, incorporando a noção de sustentabilidade que lhe dá suporte, a visão de participação da comunidade e da diversidade sociocultural, bem como os princípios de universalidade, equidade, integralidade e intersetorialidade, entre outros conceitos.
Articulando alguns dos princípios, a precedência da universalidade sobre a equidade pode reforçar a condição de cidadania plena e fortalecer laços solidários na construção de uma sociedade democrática. Do mesmo modo, se a integralidade não é um conceito que engloba tudo, mas um “conceito em estado prático” a exigir trabalho teórico e confronto com a realidade, esta pode induzir o diálogo, a pactuação e a intersetorialidade no âmbito da política pública de saneamento básico. Portanto, universalidade supõe que todos os brasileiros tenham acesso igualitário ao saneamento básico, sem barreiras de qualquer natureza. A equidade possibilita a concretização da justiça, com a prestação de serviços destacando um grupo ou categoria essencial alvo especial das intervenções. E aintegralidade, ao orientar a política de saneamento básico, tende a reforçar a intersetorialidade e a construção de uma nova governança na gestão de políticas públicas. Ademais, os conceitos de sustentabilidade, da matriz tecnológica e de participação e controle social devem ser encarados como transversais aos anteriores, na medida em que podem determinar diferentes lógicas nas políticas públicas e na gestão dos serviços, mais ou menos propensas a enxergar seus impactos em uma perspectiva mais abrangente no tempo e no espaço e mais ou menos propensas incorporar a visão emancipatória e cidadã da sociedade. E, por fim, cumpre enfatizar que a feição da política pública de saneamento básico recebe clara e determinante influência da forma como o Estado se organiza e da lógica adotada para os serviços de saneamento, sobretudo se prevalece a visão do saneamento como direito, como elemento da racionalidade técnico-administrativa ou como parte do processo de acumulação capitalista, obviamente com todas as nuances e combinações possíveis dentre as referidas visões.
Em suma, o conjunto das reflexões apresentadas revela claramente que certos princípios orientadores do Plansab não são naturalmente consensuais ou isentos de valores. Opções conceituais tanto determinam diretrizes e estratégias de determinada feição, como são portadoras de capacidade de influência nas decisões operacionais tomadas. Visto de outra forma, o Plansab, conforme capítulos a seguir, tem subjacente, no desenho de política pública para o qual o pretende contribuir, uma tomada de posição em relação aos conceitos sumariamente descritos neste capítulo, bem como a outros princípios orientadores.